Ninguém em
geral é capaz de uma intensa consciência interna, porque a vida sempre
necessita de esperança para escapar da angústia mental e do sofrimento. O
sofrimento, e muitas vezes o desespero, sobre a chamada característica eterna
das coisas são a mais persistente companhia de nossas vidas. Mas eles não
surgem em nós do exterior, através dos atos malignos de pessoas particularmente
más. Eles são condicionados ao nosso próprio ser, de fato, eles estão
interligados através de mil propostas e grossos fios com a nossa existência.
É absolutamente necessário que nós compreendamos esse fato,
porque as pessoas que nunca se livram da noção de que sua desgraça é fruto da
maldade dos outros nunca podem superar o ódio mesquinho e a malícia que
constantemente acusa, condena e persegue os outros por algo que é
inevitavelmente parte de si mesmos. Tais pessoas não irão subir para as alturas
sublimes do verdadeiro humanista, para quem o bem e o mal, a moral e a imoral,
são, portanto, termos limitados para o conflito interior das emoções humanas no
mar da vida humana.
O filósofo “além do bem e do mal”, Nietzsche, é atualmente
denunciado como criador de um ódio nacional e uma destruição metralhadora. Mas
apenas maus leitores e maus alunxs o interpretam desta forma. “Além do bem e do
mal” significa além do Ministério Público, além de fazer julgamentos, além de
matar, etc. Além do Bem e do Mal se abre diante dos nossos olhos como uma visão
do pano de fundo que é a afirmação individual, juntamente com a compreensão de
todos aqueles que são o contrário de nós mesmos, que são diferentes.
Por isso eu não me refiro à tentativa desajeitada da democracia de regular as
complexidades do caráter humano por meio da igualdade externa. A visão de “além
do bem e do mal” aponta para a direita de si mesmo, à própria personalidade.
Tais possibilidades não excluem a dor do caos da vida, mas excluem a justiça
puritana que se insere no julgamento de todos os outros, exceto de si mesmo.
É auto-evidente que a profundidade radical – muitos são
superficiais, você sabe – deve aplicar esta profundidade ao reconhecimento
humano da relação de amor e sexo. Emoções de amor e sexo estão entre as mais
íntimas, intensas e sensíveis, expressões do nosso ser. Elas são tão
profundamente relacionadas às características físicas e psíquicas individuais
como um carimbo em cada caso de amor como um caso independente, diferente de
todos os outros casos de amor. Em outras palavras, cada amor é resultado das
impressões e características que duas pessoas envolvidas dão a isso. Toda
relação de amor deve, por sua própria natureza, permanecer como um caso
absolutamente privado. Nem mesmo o estado a Igreja, a moralidade ou as pessoas
devem mediar isso.
Infelizmente esse não é o caso. A mais íntima relação é submetida a
proscrições, regulamentos e coerções; porém, esses fatores externos são
absolutamente estranhos ao amor, e leva a eternas contradições e conflitos
entre o amor e a lei.
O resultado disso é que nossa vida amorosa está imersa em
corrupção e degradação. O “amor puro”, tão aclamado pelos poetas, é, no atual
matrimônio, divórcio e disputas alienadas, um espécime raro. Com dinheiro,
status social, e posição como critérios para o amor, a prostituição é quase
inevitável, ainda que seja coberta pelo manto da legitimidade e da moralidade.
O mais permanente demônio da nossa mutilada vida amorosa é o
ciúme, frequentemente descrito como “mostro de olhos verdes”, que mente,
engana, trai e mata. O senso comum é de que o ciúme é inato e, portanto, nunca
poderá ser erradicado do coração humano. Essa ideia é uma desculpa conveniente
para aqueles que não têm capacidade ou vontade para mergulhar dentro das causas
e efeitos.
A angústia sobre um amor perdido, sobre o fio quebrado da
continuidade do amor é, de fato, inerente ao nosso ser. O sofrimento emocional
tem inspirado muitas letras sublimes, com olhares muito profundos e exaltação
poética de Byron, Shelley, Heine e outros. Mas será que é possível comparar
esta tristeza com o que comumente acontece no ciúme? Eles são tão diferentes
como a sabedoria e a estupidez. Como o refinamento e a rudeza. Dignidade e
coerção brutal. O ciúme é o oposto da compreensão, da simpatia, e dos
sentimentos generosos. O ciúme nunca adicionou algo ao caráter, nunca fez o
indivíduo grande e bom. O que ele realmente faz é torná-lo cego com fúria,
mesquinho com suspeita, e duro de inveja.
Ciúme, as contorções que vemos nas tragédias e comédias
matrimoniais, são invariáveis por um lado, intolerantemente acusadoras,
convencidas da sua própria justiça e da maldade, crueldade e culpa da sua
vítima. O ciúme nem mesmo tenta compreender. Seu único desejo é punir, e punir
tão severamente quanto possível. Essa noção é incorporada ao código de honra,
como representada em um duelo ou em uma lei não escrita. Um código que vai
considerar que a sedução de uma mulher deve ser punida com a morte dx
sedutor(a). Mesmo onde a sedução não tomou lugar, onde ambos voluntariamente
cederam ao desejo mais íntimo, a honra só é restaurada quando o sangue é
derramado, seja do homem ou da mulher.
O Ciúme é obcecado pelo sentimento de possessão e vingança. Isto
está de acordo com todas as outras leis de punição nos estatutos que ainda
aderem à barbárie noção de que uma ofensa, muitas vezes meramente resulta de
injustiças sociais, e devem ser adequadamente punidas ou vingadas.
Um argumento muito forte contra o ciúme pode ser encontrado nos
dados de historiadores como Morgan, Reclus e outros, como sobre as relações
sexuais dos povos primitivos. Qualquer um que esteja familiarizado com suas
obras sabe que a monogamia é uma forma de sexo que surgiu muito mais tarde,
como resultado da domesticação e da propriedade das mulheres, e que criou o
monopólio do sexo e o inevitável sentimento de ciúme.
No passado, quando homens e mulheres se misturaram livremente
sem a interferência da lei e da moralidade, não poderia existir ciúme, porque
este repousa sobre a suposição de que certo homem tem o monopólio exclusivo
sobre o sexo de determinada mulher e vice-versa. No momento em que ninguém visa
transgredir este preceito sagrado, o ciúme está em pé de guerra. Sob tais
circunstâncias, é ridículo dizer que o ciúme é perfeitamente natural.
Fatidicamente, se trata de um resultado artificial de uma causa artificial,
nada mais.
Infelizmente não são apenas os casamentos conservadores que são afetados pelo
ciúme com a noção de monopólio sexual; as chamadas uniões livres também são
vítimas dele. O argumento provavelmente levantado é que isto é mais uma prova
de que o ciúme é um traço inato. Mas é preciso ter em mente que o monopólio
sexual tem sido transmitido de geração em geração como um direito sagrado e
como a base da pureza da família e do lar. E assim como a Igreja e o Estado
aceitam o monopólio sexual como a única segurança para o vinculo matrimonial,
eles tem justificado o ciúmes como uma arma legítima de defesa para a proteção
do direito de propriedade.
Agora, se é verdade que um grande número de pessoas superou a
legalidade do monopólio do sexo, elxs não superaram as suas tradições e
hábitos. Por isso, elxs se tornaram tão cegxs pelo “monstro de olhos verdes”
quanto seus/suas vizinhxs conservadorxs no momento os seus bens estão em jogo.
Um homem ou uma mulher livre e grande o suficiente para não
interferir ou inquietar-se sobre as outras atrações da pessoa amada são com
certeza desprezadxs por seus/suas amigxs conservadores, e ridicularizadxs por
seus/suas amigxs radicais. Elx também será acusadx de ser umx degeneradx ou umx
covarde; e frequentemente alguns motivos materiais mesquinhos serão imputados a
elx. De qualquer forma, esses homens e mulheres serão alvo de fofocas ou piadas
grosseiras ou imundas por nenhuma outra razão além do fato delxs admitirem ao
marido, esposa ou amantes o direito de seus próprios corpos e sua expressão
emocional, sem fazer cenas de ciúmes ou ameaças selvagens para matar x intrusx.
Há outros fatores no ciúme: o conceito do macho e da inveja do
feminino. O macho em matéria sexual é um impostor, um fanfarrão, que sempre se
orgulha de suas façanhas e do sucesso com as mulheres. Ele insiste em
desempenhar o papel de um conquistador, já que ele foi informado de que as
mulheres querem ser conquistados, e que elas gostam de ser seduzidas.
Sentindo-se o único galo do curral, ou o touro que deve confrontar com seus
chifres a fim de ganhar a vaca, ele se sente mortalmente ferido na sua vaidade
e arrogância no momento em que umx rival entra em cena – a cena, mesmo entre os
chamados homens refinados, continua a ser o amor sexual da mulher, que deve
pertencer a apenas um mestre.
Em outras palavras, o monopólio do sexo em perigo, juntamente com a vaidade do
homem ultrajado, em 99 em cada cem casos são os antecedentes do ciúme.
No caso de uma mulher, o medo econômico por si mesma e pelas
crianças e sua inveja mesquinha de todas as outras mulheres que ganham graça
aos olhos do seu defensor, invariavelmente, criam ciúme. Em justiça, foi dito
para as mulheres durante os séculos passados, que a atração física era seu
único estoque na negociação, portanto, ela deve se tornar necessariamente
invejosa do charme e do valor de outras mulheres como uma ameaça ao seu poder
sobre sua propriedade preciosa.
O aspecto grotesco de toda a questão é que os homens e as
mulheres geralmente criam uma inveja violenta daquelxs que realmente não se
importam muito sobre isso. Portanto, não é o seu amor ultrajado, mas a sua
vaidade e inveja indignada que clamam contra esse “terrível erro”. É provável
que a mulher nunca amou o homem de quem ela agora suspeita e espiona.
Provavelmente ela nunca fez um esforço para manter o seu amor. Mas no momento
em que umx concorrente chega, ela começa a valorizar sua propriedade sexual
para defendê-la de forma que nenhum meio é muito desprezível ou cruel.
Obviamente, então, o ciúme não é o resultado do amor. Na
verdade, se fosse possível investigar mais casos de ciúmes, provavelmente
descobririam que quanto mais violento e desprezível é o seu ciúme, menos as
pessoas estão imbuídas de um grande amor. Duas pessoas vinculadas por harmonia
interior e unidade não têm medo de prejudicar a sua confiança mútua e
segurança, se um ou outro tem atrações externas, nem iram terminar seu
relacionamento em inimizade vil, como é muitas vezes o caso de muitas pessoas.
Muitos delxs não são capazes, nem deve de se esperar, de incluir a escolha da
pessoa amada na intimidade de suas vidas, mas isso não xs dá qualquer direito
de negar a necessidade da atração.
Assim como eu discutirei variedade e monogamia duas semanas a
partir de hoje a noite, não me deterei nisso, nem aqui, exceto para dizer que
olhar as pessoas que podem amar mais de uma pessoa de forma tão perversa ou
anormal é ser muito ignorante mesmo. Eu já discuti uma série de causas para o
ciúme, a qual devo acrescentar a instituição do casamento que o Estado e a
Igreja proclamam como “o vínculo até a morte”. Isso é aceito como o ético modo
correto de vida e a ação correta.
Com amor, em todas a sua variabilidade e mutabilidade,
acorrentadxs e apertadxs, é uma pequena maravilha se o ciúme surge fora dele.
Que outra coisa senão mesquinhez, avareza, suspeita e rancor pode surgir quando
um homem e uma mulher são oficialmente mantidxs juntxs com a fórmula “a partir
de agora vocês são um em corpo e espírito.” Basta manter qualquer casal
amarrado de tal maneira, dependentes umx dxs outrxs para cada pensamento e
sentimento, sem um interesse ou desejo externo, e se perguntar se tal relação
não deve tornar-se odiosa e insuportável com o tempo.
De uma forma ou outra os grilhões são quebrados, e como as
circunstâncias que permitem fazê-lo são geralmente baixas e degradantes, não é
de surpreender que eles coloquem em jogo os mais deteriorados e malvados traços
e motivos humanos.
Em outras palavras, a interferência legal, religiosa e moral são
os pais do nosso atual amor e vida sexual não naturais, e fora disso o ciúme
cresceu. Esse é o chicote que açoita e tortura os pobres mortais por causa de
sua estupidez, ignorância e preconceito.
Mas ninguém precisa tentar justificar-se em terra por ser uma
vítima destas condições. É bem verdade que todos nós inteligentes estamos sob
os fardos dos arranjos sociais injustos, sob coerção e cegueira moral. Mas não
somos indivíduos conscientes, cujo objetivo é trazer a verdade e a justiça aos
assuntos humanos? A teoria de que o homem é um produto de condições levou
apenas à indiferença e a um fraco consenso sobre essas condições. Ainda que
todos saibam que a adaptação a um modo de vida não saudável e injusto só
fortalece a ambos, enquanto o homem, o chamado “coroa de toda a criação”,
equipado com uma capacidade de pensar e ver e acima de tudo para empregar os
seus poderes de iniciativa, cresce cada vez mais fraco, mais passivo, mais
fatalista.
Não há nada mais terrível e fatal do que escavar dentro das
vísceras de um de seus entes queridos e de si mesmo. Isso só pode ajudar a
rasgar os fiapos de afeto que ainda são inerentes à relação e, finalmente,
trazer-nos até a última trincheira, que tenta combater o ciúme, ou seja, a aniquilação
do amor, amizade e respeito.
O ciúme é realmente um meio pobre para proteger o amor, mas é um
meio seguro para destruir o auto-respeito. Para pessoas ciumentas, como
“drogas-demônios”, rebaixa ao nível mais baixo e, no final, inspira apenas
desgosto e repugnância.
A angústia pela perda de um amor ou por um amor não
correspondido entre as pessoas que são capazes de pensamentos elevados e finos
jamais fará uma pessoa se tornar rude. Aquelxs que são sensíveis e finxs apenas
devem perguntar-se se podem tolerar qualquer tipo de relação obrigatória, e um
enfático “não” seria a resposta. Mas a maioria das pessoas continua a viver
próximas uma das outras, apesar de terem a muito tempo deixado de viverem umas
com as outras – uma vida fértil o suficiente para a operação do ciúme, cujos
métodos percorrem todo o caminho desde abrir a correspondência privada até o
assassinato. Comparado com tais horrores, adultério aberto parece um ato de
coragem e libertação.
Um escudo forte contra a vulgaridade do ciúme é que o homem e a
mulher não são um só em corpo e espírito. Eles são dois seres humanos, com
temperamentos diferentes, sentimentos e emoções. Cada um é um cosmos pequeno em
si mesmo, absorto em seus próprios pensamentos e idéias. Isso é glorioso e
poético se estes dois mundos se encontram em liberdade e igualdade. Mesmo que
isso dure pouco tempo, já valerá à pena. Mas, no momento em que os dois mundos
são forçados a ficar juntos, toda a beleza e o perfume cessam e nada mais que
folhas mortas permanecem. Quem compreende esta obviedade irá considerar o ciúme
como algo abaixo de si e não permitirá que isso seja pendurado como uma espada
de Dâmocles sobre elx.
Todos os amantes fazem bem ao deixarem as portas do seu amor aberto. Quando o
amor pode ir e vir sem medo de encontrar um cão de guarda, o ciúme raramente
irá criar raízes porque ele vai aprender rapidamente que onde não há fechaduras
e chaves, não há lugar para a suspeita e desconfiança, dois elementos sobre os
quais o ciúme cresce e prospera.
