Translate

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Movimento passe Livre - Não começou em Salvador, não vai terminar em São Paulo

Como um fantasma que ronda as cidades deixando marcas vivas no espaço e na memória, as revoltas
populares em torno do transporte coletivo assaltam a história das metrópoles brasileiras desde sua formação.
Os bondes virados, os trens apedrejados, os ônibus incendiados, os catracaços [2], os muros “pixados” com as vozes das ruas, as barricadas erguidas contra os sucessivos aumentos das passagens são expressão da digna raiva contra um sistema completamente entregue à lógica da mercadoria. Num processo em que a população é sempre objeto em vez de sujeito, o transporte é ordenado de cima, segundo os imperativos da circulação do valor. Dessa forma, a população é excluída da organização de sua própria experiência cotidiana da metrópole, organização essa que se realiza principalmente pelo sistema de transporte, o qual restringe a mobilidade ao ir e vir do trabalho e coloca catracas em todos os caminhos da cidade. E, no momento que se fortalecem as catracas, as contradições do sistema tornam-se mais evidentes, suscitando processos de resistência. É em meio a essa experiência concreta da luta contra a exclusão
urbana que se forjou o Movimento Passe Livre.
As revoltas de junho de 2013, desencadeadas pela luta organizada pelo MPL-SP contra o aumento das
tarifas, não são algo inteiramente novo. Para começar a compreender esse processo é preciso que voltemos a, no mínimo, 2003, quando, em resposta ao aumento das passagens, iniciou-se em Salvador uma série de
manifestações que se estenderam por todo o mês de agosto daquele ano, que ficou conhecida como a Revolta do Buzu[3]. É impossível calcular precisamente quantas pessoas participaram desses protestos, mas as estimativas giram em torno de 40 mil, e pode-se dizer que qualquer pessoa que tenha entre 24 e 34 anos hoje em dia e que morava na capital baiana participou da revolta. Durante as aulas, estudantes secundaristas pulavam os muros das escolas para bloquear ruas em diversos bairros, num processo descentralizado, organizado a partir de assembleias realizadas nos próprios bloqueios. A indignação popular represada no interior do transporte coletivo fomentou uma dinâmica de luta massiva que escapava a qualquer forma previamente estabelecida. A Revolta do Buzu exigia na prática, nas ruas, um afastamento dos modelos hierarquizados; expunha outra maneira, ainda que embrionária, de organização.
Ao fugir de qualquer receituário pronto, a revolta deixava em aberto o sentido das mobilizações, tanto no
que se refere à organização do transporte quanto à do próprio movimento. Com isso, entidades estudantis
aparelhadas por grupos partidários se colocaram como lideranças e passaram a negociar com o poder público em nome dos manifestantes. Após barganhar meias concessões com os governantes, sem atingir a revogação do aumento, utilizaram-se de todos os meios possíveis para desmobilizar a população.
A partir dos relatos publicados no Centro de Mídia Independente[4] e do documentário Revolta do Buzu, de Carlos Pronzato[5 ], a experiência da ação direta da população por meio de assembleias horizontais, o
aparelhamento da revolta pelas entidades estudantis e a explosividade da luta pelo transporte público ganharam certa projeção nacional. O filme passou a ser utilizado em várias cidades por comitês pelo passe livre estudantil – que já se organizavam localmente em torno de projetos de lei – em atividades em escolas, ampliando o debate sobre a questão do transporte e as formas de organização alternativas ligadas a ela. Os mesmos estudantes que assistiram àquelas imagens e as debateram pulariam os muros de suas escolas pouco tempo depois, para se juntar às manifestações da Revolta da Catraca, em Florianópolis, em 2004[6]. Ocupando terminais e bloqueando a ponte que dá acesso à ilha, os protestos forçaram o poder público a revogar o aumento e serviram de base para a fundação do MPL no ano seguinte.
A perspectiva aberta por esse curto processo de lutas que alcançou a vitória na capital catarinense deu origem ao movimento: uma tentativa de formular o sentido presente naquelas revoltas, a experiência acumulada pelo processo popular, tanto em sua forma como em suas motivações. Surge então um movimento social de transportes autônomo, horizontal e apartidário, cujos coletivos locais, federados, não se submetem a qualquer organização central. Sua política é deliberada de baixo, por todos, em espaços que não possuem dirigentes, nem respondem a qualquer instância externa superior.
Ao mesmo tempo que ultrapassava as formas de organização já estabelecidas, o teor explosivo das
mobilizações apontava para as contradições que o produziam, imbricadas no sistema de transporte coletivo,
ponto nodal na estrutura social urbana. O acesso do trabalhador à riqueza do espaço urbano, que é produto
de seu próprio trabalho, está invariavelmente condicionado ao uso do transporte coletivo. As catracas
do transporte são uma barreira física que discrimina, segundo o critério da concentração de renda, aqueles que podem circular pela cidade daqueles condenados à exclusão urbana. Para a maior parte da população
explorada nos ônibus, o dinheiro para a condução não é suficiente para pagar mais do que as viagens entre a
casa, na periferia, e o trabalho, no centro: a circulação do trabalhador é limitada, portanto, à sua condição de mercadoria, de força de trabalho.
A luta de reapropriação do espaço urbano produzido pelos trabalhadores supera, na prática, a bandeira do
MPL em seus primeiros anos, que era o passe livre estudantil. Quando as tarifas aumentam, evidenciam-se
contradições que afetam a todos, não somente os estudantes, e então deixa de fazer sentido ter em vista
apenas um recorte da população. A luta por transporte tem a dimensão da cidade e não desta ou daquela
categoria. Cada vez mais debatida internamente, a ideia do passe livre para todos ganhou sustentação após o movimento revisitar o projeto Tarifa Zero, formulado pela prefeitura de São Paulo no início da década de 1990. O salto de compreensão sobre o sistema que tal análise trouxe ao MPL terminou por desfazer o véu de argumentos técnicos que escondia os conflitos sociais e econômicos por trás da gestão do transporte. Daí em diante, assumiu-se o discurso do transporte como direito, aliás fundamental para a efetivação de outros direitos, na medida em que garante o acesso aos demais serviços públicos. O transporte é entendido então como uma questão transversal a diversas outras pautas urbanas.
Tal constatação amplia o trabalho do MPL, que deixa de se limitar às escolas, para adentrar em bairros,
comunidades e ocupações, numa estratégia de aliança com outros movimentos sociais – de moradia, cultura e saúde, entre outros.
Se a retomada do espaço urbano aparece como objetivo dos protestos contra a tarifa, também se realiza
como método, na prática dos manifestantes, que ocupam as ruas determinando diretamente seus fluxos e usos. A cidade é usada como arma para sua própria retomada: sabendo que o bloqueio de um mero cruzamento compromete toda a circulação, a população lança contra si mesma o sistema de transporte caótico das metrópoles, que prioriza o transporte individual e as deixa à beira de
um colapso. Nesse processo, as pessoas assumem coletivamente as rédeas da organização de seu próprio
cotidiano. É assim, na ação direta da população sobre sua vida – e não a portas fechadas, nos conselhos
municipais engenhosamente instituídos pelas prefeituras ou em qualquer uma das outras artimanhas
institucionais –, que se dá a verdadeira gestão popular.
Foi precisamente isso que aconteceu em São Paulo quando, em junho de 2013, o povo, tomando as ruas,
trouxe para si a gestão da política tarifária do município e revogou o decreto do prefeito que aumentava a passagem em vinte centavos.
Não foi diferente do que ocorrera em Florianópolis na vitória que se sucedeu à luta de Salvador, e no ano
seguinte, quando a cidade barrou o aumento mais uma vez. A mesma experiência, em que a população se
apodera de forma parcial mas direta da organização do transporte – e, com ela, de uma dimensão fundamental da vida urbana – se repetiu nas revoltas de Vitória (2006), Teresina (2011), Aracaju e Natal (2012) e Porto Alegre e Goiânia (início de 2013). E se repete nas periferias sempre que pneus e ônibus queimados revertem o corte de linhas das quais dependem os moradores. É também esse o gesto cotidiano (limitado apenas pelo alcance das ações individuais) de quem não paga a tarifa – pulando a catraca, passando por baixo, entrando pela porta traseira ou descendo pela frente – e implementa assim, na prática, a tarifa zero. Em 2012, os usuários foram ainda mais longe, quando, revoltados com as panes nos trens, arrancaram as catracas, incendiaram a bilheteria e destruíram as câmeras de segurança da estação Francisco Morato da CPTM, viajando de graça até a conclusão dos reparos, no dia seguinte[7]. Tomando as ruas, as Jornadas de Junho de 2013 rasgaram toda e qualquer perspectiva técnica acerca das tarifas e da gestão dos transportes que procurasse restringir seu entendimento aos especialistas e sua “racionalidade”, a serviço dos de cima. Ao reverter o aumento das passagens em mais de cem cidades do país, as pessoas deslocaram momentaneamente – e com impactos duradouros – o controle político da gestão do transporte. Forjou-se, no calor das barricadas, uma experiência de apoderamento que não se resume à ocupação física das cidades, mas estende-se à maneira como se organizam os transportes no país. É essa tomada
de poder que assusta os gestores estatais e privados, que tentam agora reocupar o espaço que perderam para os trabalhadores urbanos.
As mobilizações sempre foram muito mais amplas que o Movimento Passe Livre – que jamais se pretendeu dono de qualquer uma delas – e eclodiram, por vezes, em cidades e regiões onde nunca houve atividades do movimento. As lutas por transporte no Brasil formam um todo muito maior do que o MPL. Contudo, a tomada direta e descentralizada das ruas, a radicalidade das ações e a centralidade dos aumentos tarifários dá a tônica dessas lutas. Após as Jornadas de Junho, milhares continuam nas ruas em diversas cidades, defendendo agora a implementação da tarifa zero.
A organização descentralizada da luta é um ensaio para uma outra organização do transporte, da cidade e
de toda a sociedade. Vivenciou-se, nos mais variados cantos do país, a prática concreta da gestão popular. Em São Paulo, as manifestações que explodiram de norte a sul, leste a oeste, superaram qualquer possibilidade de controle, ao mesmo tempo que transformaram a cidade como um todo em um caldeirão de experiências sociais autônomas. A ação direta dos trabalhadores sobre o espaço urbano, o transporte, o cotidiano da cidade e de sua própria vida não pode ser apenas uma meta distante a ser atingida, mas uma construção diária nas atividades e mobilizações, nos debates e discussões. O caminho se confunde com esse próprio caminhar, que não começou 
em Salvador, e não vai terminar em São Paulo.