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quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Cruz e Souza - "Consciência Tranquila"

Prosa de Cruz e Souza, com "relato" pezadissimo sobre a escravidão e a "consciência tranquila" de um abastado senhor de escravos "ilustre" homem branco e cidadão de "bem"...




CONSCIÊNCIA TRANQÜILA
O ilustre, o douto homem rico, o abastado senhor
de escravos está já, segundo a previsão do seu médico,
quase às portas da morte.
Sobre o luxuoso leito largo, na alvura fria dos
linhos, entre os gélidos silêncios das paredes altas, ele
está mudo, semimorto, dormindo, como que se
predispondo para o sono eterno.
No confortável aposento onde ele aguarda afinal o
último suspiro, vai e vem, abafando os passos, toda uma
sociedade de honrados bajuladores, de calculistas
espertos e frios, de interessados argutos, de herdeiros
capciosos, de tipos bisonhos e suspeitos, almas
simplesmente consagradas ao instinto de conservação
da vida no que ela tem de mais caviloso e oblíquo.
Graves e grandes, como bocejos lassos, como tédios
esquecidos, os momentos do moribundo se prolongam e
os comentários esfuziam e ferem, à surdina, o ar doentio,
pesado...
– Não há dúvida que vamos perder um homem
útil, prestimoso, eminente, carregado de saber e
virtudes, bom e piedoso, ah! sobretudo bom e piedoso.
Que coração de anjo para os humildes, para os tristes,
para os fracos, para os desamparados. A sua bolsa,
sempre inesgotável, dividia-se com todos. Verdadeiro
apóstolo da caridade, da religião e da ciência, era um
justo na acepção da palavra, de uma moral elevada até
à santidade. Nunca me há de esquecer de como ele foi
sempre generoso para essas raparigas miseráveis, gente
baixa, que nem ao menos tem a vala comum para cair
morta e que ele afinal protegia com a sua bolsa e
arranjava-lhes noivos entre pobres-diabos da plebe,
quando por acaso elas deixavam de ser virgens com ele...
De muitas, de muitas sei eu que ele tornou felizes com
o seu prestígio, dando-lhes casamento e dinheiro. Sim!
porque outro fosse ele, como esses bandidos que por aí
andam, que deixariam as pobrezinhas ao desamparo e
com filhos. Ele, não; casava-as logo e assim trazia
felicidade aos casais que constituía. Muito, muito justo,
sempre foi muito justo em tudo! Homem distinto! Homem
distinto! Este é dos poucos que podem morrer com a sua
consciência tranqüila, perfeitamente tranqüila!
Quem assim falava com esta ingênua malignidade,
com esta nova, inédita inocência, com esta terrível e
eloqüente ironia, por si próprio, no entanto,
desconhecida, era um homem de olhos ladinos e gestos
sacudidos, próspero, rubicundo, expressão loquaz de ave
rapace, nariz altivo, espécie de sagaz furão de negócios,
parecendo estar sempre ocupado em absorver e conhecer
pela atilada pituitária o ar das cousas e dos interesses
imediatos.
Num dos dedos da sua mão ágil, pronta, precisa
para o assalto à vida, com a medida exata dos grandes
golpes ocultos, reluzia a clara gota d’água iriada de um
rijo brilhante.
Mas, o troféu de glórias deste curioso exemplar
humano era o famoso e filaucioso cavaignac, meio
diabólico, meio cínico, que ele afagava com gravidade e
volúpia, abrindo em leque, num gozo particular, como se
o cavaignac fosse o seu inspirador e o seu oráculo naquela
eloqüência.
Como todo o bandido bem acabado, perfeito, como
todo o Tartufo casuístico, tinha o seu séquito, os seus
satélites, que instintiva ou calculadamente ouviam e
aprovavam sempre em silêncio servil tudo quanto ele
dizia e lhe forneciam a manhosa e morna atmosfera,
feita de rastejantes e vermiculares sentimentos na qual
ele vivia à farta, num transbordamento de tecidos
adiposos, cevando-se nas lesmentas vaidades e caprichos
mesquinhos dos outros, lisonjeando-lhes as pretensões,
alimentando-lhes os vícios, devorando-lhes o ar, numa
verdadeira existência parasitária.
Mas, agora, todas as atenções se voltavam,
alvoroçadas, ansiosas, para o velho moribundo, que
acordara afinal em sobressaltos, o olhar desvairadamente
pairado num ponto, como se por um esquisito fenômeno
tivesse ressurgido do terror do sono eterno e viesse ainda
perseguido por glaciais fantasmas que o arrastavam pelos
cabelos e pelas vestes, através de uma treva duramente
muda e aflitiva...
E, ou fosse remorso ou fosse álgido medo da hora
extrema ou fosse mesmo agudo e histérico delírio
imaginativo de senil e tábido celerado que vai morrer, o
certo é que todos, no auge do espanto, no mais esmagador
dos assombros, sem poder conter a súbita e estupenda
torrente que lhe foi espumando e jorrando da boca
bamba, ouviram este cruel e amorfo monólogo, feito de
lama e podridão, de estanho inflamado, de ferro e fogo,
de acres e apunhalantes sarcasmos, de ódio e visco, de
mordentes perversidades, de chagas nuas, de lacerações
de carnes gangrenadas, de soluços e estupros, de ais e
risadas, de suspiros e concupiscências baixas, de beijos
e venenos, de estertores e lágrimas, tudo rodando,
rodando através do pesadelo da Morte.
Como que a seu pesar, um fenômeno desconhecido
o transfigurava, punha-lhe na boca a eloqüência viva de
chamas devoradoras. Ele era, naquele momento, a presa
formidanda das correntes da matéria, que os mais
curiosos e estupendos sentimentos abalavam: como que
uma outra natureza, sem ser propriamente,
legitimamente a sua, a natureza dos mistérios, que paira
acima de tudo o que nos é terrenamente acessível, a
natureza do Incognoscível das Esferas, dos maravilhosos
Ritmos, o inspirava, falava pela voz dele, enchia-o de
fluidos prodigiosos, arrebatava-o para um meio sonho e
para um meio delírio, onde, contudo, transpareciam faces
verdadeiras das cousas, já galvanizadas pelo passado.
Aquilo era como que o exemplo vivo, iniludível e
supremo dessa vaga névoa, dessa bruma de Abstrato,
que há em todo o Tangível, do Sobrenatural que há em
todo o Verdadeiro.
– Ah! lá se vão elas, vejam, lá se vão elas! Quantas!
Quantas! Eram todas minhas! Vinham entregar-se ao
meu ouro que tinia, tilintava, tinia com a sua luz sonora.
Olhem, lá vão elas! Todos aqueles corpos eu beijei, eu
gozei, eu depravei, eu saciei! Todos aqueles belos corpos
brancos se adelgaçaram, se quebraram, vergaram, em
curvas voluptuosas de abóbada estrelada, às minhas
furiosas luxúrias. Parecia que corcéis de fogo disparavam
no meu sangue, corriam a toda brida nos meus nervos,
tanto a sensualidade me agitava, me vertiginava,
aguilhoava-me com os seus aguilhões acerados. E eram
todas virgens, que eu desviei, estrábico de gozo, nas
formidáveis alucinações da carne. Pois se eu tinha o
meu ouro, o meu ouro que agisse sem demora e mas
trouxesse vencidas; pois se eu tinha o meu ouro, o meu
ouro que as escravizasse à minha lascívia, o meu ouro
que as fascinasse, o meu ouro que as atraísse, o meu
ouro que as magnetizasse, o meu ouro que as cegasse, o
meu ouro que as perdesse, o meu ouro que as aviltasse!
Pois se eu tinha o meu ouro, que mal então que eu
comprasse formas de argila, com o meu ouro de forma
de sol! Pois se eu tinha o meu ouro! Pois se eu tinha o
meu ouro! Pois se eu tinha o meu ouro!
Por entre os linhos alvos do leito, naquelas
brancuras preciosas, como que um rio de ouro, um
cascatear de ouro, uma música de ouro vinham então
finamente e fluidamente rolando, distendendo pelo leito
os seus harmoniosos e claros veios de ouro, numa feeria
de som, de alvura e de ouro.
E o senil e tábido milionário estava ali como um
célebre mago dominado pelo ritmo alucinante, pela vara
magnética desse êxtase de visionário moribundo, pela
doentia e sonâmbula superexcitação nervosa, por toda
essa vertigem, por todo esse deslumbramento hipnótico,
fatal, enlouquecedor, do ouro. E ele ria alvarmente uma
risada entre amarela e negra, que fazia lembrar o
fúnebre caixão que o esperava...
Todos, estupefatos, suspensos, diante daquele
delirante e sensacional espetáculo que não podiam
encobrir nem conter, tinham a respiração sufocada, os
semblantes transtornados, lívidos, tão lívidos que
pareciam outros tantos moribundos que ouviam, imóveis,
num espasmo de angustioso terror, esse outro sinistro
moribundo falando.
Agora, porta mais negra e mais ensangüentada
se abrira escancaradamente, num rápido rasgão de raio
que fende as nuvens, ao delírio do cérebro demente do
quase morto: era como se nenhum escrúpulo delicado,
sutil o prendesse mais à terra e aos homens; se todos
os fios e laços das suscetibilidades da alma se houvessem
partido, despedaçado e ele ficasse só nos instintos, à
vontade, besta desenfreada, livre de todas as correntes
do Sensível, sob o impulso primitivo, selvagem,
desorientado, animal, deserto, da simples matéria e da
simples carnalidade:
– Ah! Ah! pois não era o meu ouro, só o meu ouro,
sempre o meu ouro que comprava tanta carne humana,
desprezível, que eu via entrar nas senzalas, de volta do
eito?! Negros trêmulos, velhos e tristes, com o dorso
curvado por uma remota subserviência ancestral, atávica,
fantasmas de pedra, mudos e cegos na sua dor absurda...
Às vezes era pelos amargos desfalecimentos da
tarde; e, no fundo denso da noite algumas estrelas
espiavam como sentinelas, de olhos acesos e vigilantes,
aquela torva massa trôpega e tarda que caminhava como
do fundo de um tempestuoso e formidável sonho: os
crânios desconformemente alongados, os perfis com
deformações hediondas, talhados à bruta por mãos de
gênios rebeldes, infernais e os olhos envenenados pela
mais atroz, bárbara e mórbida melancolia das
melancolias. Como que vinham, num turvo e amorfo
desfilar do centro misterioso da terra, com a cor da terra,
com a cor das trevas primitivas, esqueléticos,
cadavéricos, héticos, na assombrosa condensação de
todas as criações shakespeareanas, arrastando os
miseráveis e ensangüentados farrapos das almas.
Parecia-me que se cavava de repente, por toda a
extensão do eito, imensa, profunda cova; que essa cova
era como velha chaga secular formidavelmente grande,
sinistramente sangrenta, a devorar, a devorar, a devorar
carne humana, legiões e legiões de míseros, um fabuloso
mar negro e selvagem de corpos e almas amaldiçoadas...
E essa chaga tremenda, avassaladora, fatal, ia então
alastrando, não já sangrenta, mas verde, podre,
gangrenada, aberta a monstruosa e purulenta boca verde.
Não sei para que sobre-humano horror eu recuava,
para que noite caótica de horror animal eu mergulhava
a tremer, a tremer, a tremer...
Ficava então de repente com a imaginação
dominada por cruéis sobressaltos, com ansiedades,
delírios a se vulcanizarem no cérebro... Subiam-me ao
cérebro obsessões de loucura, como que os meus
pensamentos se agachavam, se encolhiam aterrorizados
a um canto do cérebro... Um medo agudo, invencível,
me amarrava os nervos... Todo eu gelava, suava medo...
E aquela bamba, trôpega e tarda massa torva, fenomenal,
numerosa, estranha, tão estranha aos meus sentidos
apavorados, dava-me a impressão fantástica de abismos
que caminhavam, de tenebrosas florestas de corpos
cheias de rugidos de feras, de garras, de dentes
devoradores, que eu via de repente atirarem-se,
arrojarem-se sobre mim, bramindo vingança, e
despedaçarem-me, estrangularem-me todo.
Ao meu espírito aterrado, ao mundo virgem e
nunca visto de visões que se me desenvolviam no
deslumbrado raio visual, era como se todos aqueles
esqueletos negros se reproduzissem, surgissem por toda
a parte turbilhões e turbilhões, tumultos e tumultos,
matas serradas, compactas, selvas bravias de esqueletos
negros, toda a África colossal ululando e soluçando num
ululo e num soluço milenário... E, por sobre todos esses
milhões de cabeças tenebrosas, pairava no ar,
solenemente, prognosticadamente, sugestionado-
ramente, como o satânico e sinistro Anjo da Guarda da
negra raça dos desertos, lassa e descomunal, lânguida
e letárgica serpente, talvez dormindo e sonhando novos
e mais maravilhosos venenos, com as grandes asas
abertas... Ah! eram sobrenaturais esses sofrimentos que
assim me remordiam tanto com tamanhos dentes e com
tamanhas garras!
Deus, a essas horas tão tremendas para a minha
consciência, ali tão humilhada, batida, cobarde de terror
diante daqueles negros espectros, onde estava Deus,
para trazer-me um alívio, um consolo para ter piedade
de mim, para dar-me de beber da fonte clara, fresca e
suave da tranqüilidade, para saciar a sede de humildade,
de pobreza, de simplicidade, a sede devoradora que me
incendiava, a mim, a gula viva do ouro, a mim, a gula
viva da sensualidade, a mim, a gula viva do crime!
No entanto, ah!, que risadas satânicas, diabólicas,
que satisfação perversa me assaltava quando o feitor,
bizarro, mefistofélico, de chicote em punho, lanhava,
lanhava, lanhava os miseráveis e lindos corpos de certas
escravas que não queriam vir comigo! Oh! lembra-me
bem de uma que mandei lanhar sem piedade. A cada
grito que ela soltava eu gritava também ao feitor: – Lanha
mais, lanha mais! E o bizarro feitor lanhava! O sangue,
grosso e lento, como uma baba espessa, ia formando no
chão um pântano onde os porcos vinham fuçar
regaladamente! Com que febre, com que alucinação
inquisitorial eu gozava essas torturas! Até mesmo, às
vezes, via-me possuído de um extravagante desejo
animal, de um desejo monstro de beber, como os porcos,
todo aquele sangue. Lembro-me também de outra,
bestialmente grávida, prestes a ser mãe, a quem eu,
para saciar a minha sede feroz de ciúme, a minha sede
de raiva, a minha sede de concupiscência suína, mandei
aplicar quinhentas chicotadas, enquanto os meus dentes
rangiam na volúpia do ódio saciado. Desta foi tamanha
e tão atroz a dor, tão horríveis as contorções, enroscando-
se como serpente dentro de chamas crepitantes, que
esvaiu-se toda em sangue, abortou de repente e ali
mesmo morreu logo, felizmente lembro-me bem, com a
boca retorcida numa tromba mole, espumando roxo e
duas grossas lágrimas profundas a escorrerem-lhe no
canto dos olhos vidrados...
E de outra ainda lembro-me também, porque eu a
mandei afogar no rio das Sete Chagas, junto à figueira-
do-inferno, com o filho, que era execravelmente meu,
dentro das entranhas... Mandei afogar tarde, a horas
mortas, depois que certo sino cavo soluçou as doze
badaladas lentas e sonolentas no amortalhado luar... E
devo ter algum remorso disso? Remorso? De quê? Por
quê? Por quem? Meu filho? Como? Feito por um civilizado
num bárbaro, num selvagem? Remorso por tão pouco?
Por lama vil que se joga fora, por barro ignóbil que para
nada presta?! Remorso por fezes, resíduos exíguos de
elementos inservíveis, bílis negra, composto de produtos
podres, gases deletérios e inúteis, pus fétido – pois por
essa asquerosa e horrenda cousa que se formou e
ondulou misteriosamente sonâmbula nas entranhas
pantéricas de uma negra hei de ter, então, remorso,
hei de ter, então, remorso?!
E os quatro enforcados da encruzilhada do
engenho, com as hirtas línguas de fora, por uma noite
de trovões e relâmpagos, oscilando dos galhos das árvores
como pêndulo da morte! E os que morreram no tronco,
com a espinha dorsal quase vergada ao meio! E aqueles
que de desespero e de aflição sem remédio se rasgaram
os ventres enterrando-lhes fundo facas agudas! Os que
estalaram tostados, queimados nos fornos em brasa! Os
que foram arrastados pelos campos a fora, a galope,
atados a caudas de cavalo! Os que tiveram os ventres
atravessados pelas aspas dos bois bravios! Os que se
envenenaram com venenos mais mortais que o das
serpentes! Os que se degolaram na mais desesperada
das agonias!
E aquela negra terrível que morreu louca,
abraçada ao filho pequeno, dando-lhe alucinadamente
de mamar, nua, toda nua, com o seio a escorrer leite e
ao mesmo tempo a escorrer sangue pelas feridas de
trezentas e setenta e tantas chicotadas, com os olhos
esbugalhados, a olhar-me muito, a olhar-me sempre,
parece que ainda horrivelmente a olhar-me agora, a
perseguir-me, a cortar-me de pavor como uma lâmina
gelada e penetrante.
Ah! e aquele negro de cem anos, morfético,
inchado como um sapo enorme, manipanço senil, a quem
eu arranquei os dois olhos com a ponta de uma verruma,
enquanto ele urrava e escabujava de dor como um tigre
apunhalado! E isto em pleno eito, num meio-dia de ferro
e fogo, que cortava e queimava, por um sol dilacerante,
devorador como feras esfaimadas, sangüinolentas! E eu
arranquei-lhe os olhos, enterrando-lhe fundo a verruma
sem piedade, depois de já lhe haver aplicado por todo o
corpo, apodrecido e chagado pela morféia, seiscentas
vergalhadas, de pulso musculoso e rijo e de relho forte
aberto em trinta pernas terminando em agudos pregos
nas pontas. Ah! como o velho manipanço se retorcia,
espumava, gania, mordia a língua, soltava pinchos por
entre os torvelinhos, os círculos vertiginosos,
desvairados, das trinta pontas aguçadas das pernas
rígidas do relho!
E ainda aquele outro negro decrépito, de uma
boçalidade caduca, cego, mudo e idiota, completamente
cego e mudo, que foi encontrado morto no curral dos
porcos, a cabeça fora do tronco, inteiramente decepada
a machado, os órgãos genitais dilacerados!
Remorsos, eu, então, de toda essa treva trágica,
de toda essa lama de crimes apodrecida?! Como,
remorso? Pois não era do trono do meu ouro que eu
estava rei soberano, assim, com o cetro do chicote em
punho, coroado de ouro, arrastando um manto de púrpura
feito de muito sangue derramado?! Remorso? De quê?
Se o meu ouro tudo lavava, vencia, subjugava a todos e a
tudo, emudecia a justiça, tornava completamente servis
e de pedra os homens, fazendo de cada sentimento um
eunuco?!
A estas palavras como que pareceu haver um certo
movimento de protesto, de altivez revoltada, na pasmada
assembléia que o ouvia: quase que um vago vento de
indignação passou... Mas, como entre os males da vida
“o mal de muitos consolo é”, e quase todos que ali estavam
eram parentes do moribundo, aguardavam uma parte do
seu grande ouro; e como também nos seus cerebrozinhos
empíricos lhes passasse de repente a idéia de que talvez
por um milagre da riqueza, por um extraordinário valor
e soberania do potentado, ele muito bem podia levantar-
se do leito ainda e expulsá-los a chicote daquele recinto,
todos se entreolharam manhosamente e fizeram
depressa espinha mais flexível, fingiram-se mortos o
melhor que puderam – vivos, mais mortos que o
semimorto.
Toda essa delirante epopéia de lama, treva e
sangue, era por ele murmurada lentamente, com voz
cava, soturna, como através das paredes de um lôbrego
subterrâneo ou nas sombrias, solitárias arcadas de um
convento os crepusculamentos de um Requiem...
Impelido por uma força nervosa erguera-se um
pouco no leito, talvez ainda mais envelhecido agora,
trêmulo, transfigurado, o olhar sempre fixo num ponto,
olhar de cego que olha em vão tudo, que como que só vê
para dentro de si mesmo...
Mas de repente o moribundo teve uma risada alvar,
lugubremente idiota, entre amarelada e negra, que fazia
fatalmente lembrar o fúnebre caixão que o esperava...
E, arremessando convulsamente as frases como lançadas
no ar, na violência do esforço derradeiro, tremendo, como
quem chama a si as últimas energias da matéria que
desfalece, a língua já presa, já acorrentada pelos pesados
grilhões da morte que vinha vindo, pendeu a encanecida
cabeça de celerado senil, exausto de forças, os braços
molemente caídos ao longo do leito, os olhos e a boca
desmesuradamente abertos, a respiração siflante, num
espasmo sinistro...
No ambiente ansioso, inquietante, do aposento,
pairou uma comoção mortal...
Dos lençóis alvos e frios do leito, bruscamente
revoltos na alucinadora aflição daquele velho corpo
martirizado, como que transpareciam, se levantavam
brancas visões de sepulcro...
Nos circunstantes, à maneira de velhos
instrumentos de cordas usadas, que vibram
insolitamente, percorreu logo um pavoroso
estremecimento. Todos se acercaram do leito, os rostos
transfigurados, na agitação convulsa do grande final –
míseras, tristes sombras que num movimento arrastado,
impelidas por sensações secretas, se acercavam de uma
sombra mais mísera, mais triste...
E, ó ironia da Culpa original!, numa leve contração
da boca, ainda com um voluptuoso e luminoso alento de
vida a esvoarçar-lhe nos olhos, sem longos e torturantes
estertores, deixando apenas escapar um fugitivo, breve
gemido de lá bem do fundo vago, quase apagado,
longínquo, do seu Crime, na atitude de um justo, o ilustre
homem rico, o abastado e poderoso senhor de escravos
expirou – dir-se-ia mesmo com a sua consciência
tranqüila, completamente tranqüila...

Sobre Cruz e Souza:

Cruz e Souza nasceu escravo. Entretanto, foi liberto aos 
quatro anos de idade quando o marechal Guilherme Xavier de Souza alforriou 
seu pai antes de partir para a Guerra do Paraguai. Mas, não só por este motivo 
a guerra influenciou sua vida. Finda a campanha, que contou com as armas 
negras, a situação dos escravos mudou um pouco. Era inegável a importância 
que o elemento negro desempenhou no campo de batalha. Entretanto, isto não 
seria suficiente para influir decisivamente na condição do negro no Brasil, pois 
o regime escravocrata agonizaria durante 18 anos até a promulgação da Lei 
Áurea. Assim, se por um lado o poeta tinha motivos para se orgulhar de sua 
cor heróica, por outro continuaria sendo alvo de preconceitos raciais.

De intelectual republicano e abolicionista, Cruz e Souza transformou-se 
em poeta simbolista, depois em símbolo de sua própria era através da arte.
O foco de atenção do poeta deixa de ser o mundo, para ser o seu próprio 
mundo. Um mundo atemporal, onde o contingente só tem lugar em virtude 
da transcendência que possibilita. O poeta simbolista, emblematicamente 
símbolo e, porque também não dizer, vítima de seu tempo, dá azo a suas 
obras derradeiras. Agiganta-se o homem Cruz e Souza. Colocando nas 
costas todo o peso de sua condição de negro, liberto, rejeitado, genial 
e poeta, ele dá a luz ao melhor de sua produção literária. “Evocações”, 
“Faróis” e “Últimos Sonetos”, entrariam para a história da literatura 
brasileira e, quiçá da literatura mundial, em virtude de suas qualidades 
estilísticas, estéticas e éticas.

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