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sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Ateu Graças A Deus



O acaso é o grande senhor de todas as coisas. A necessidade só vem depois. Não tem a mesma pureza.
Se entre meus filmes tenho uma ternura particular por Le Fantôme de la Liberté, é talvez porque ele
aborda esse tema inabordável.

O roteiro ideal, com o qual sonhei muitas vezes, procederia de um ponto de partida anódino, banal.
Por exemplo: um mendigo atravessa uma rua. Vê uma mão que se estende pela janela aberta de um carro
de luxo e joga no chão a metade de um charuto. O mendigo para bruscamente para pegar o charuto.
Outro carro o atropela e mata.

A partir desse acidente pode ser feita uma série infinita de perguntas. Por que o mendigo e o
charuto se encontraram? Que fazia o mendigo àquela hora na rua? Por que o homem que fumava o
charuto o jogou fora naquele momento? Cada resposta dada a essas perguntas gerará outras perguntas,
cada vez mais numerosas. Nós nos encontraremos diante de encruzilhadas cada vez mais complexas,
levando a outras encruzilhadas, a labirintos fantásticos, onde teremos que escolher nosso caminho.
Assim, seguindo causas aparentes que na realidade são apenas uma série, uma profusão ilimitada de
acasos, poderíamos remontar cada vez mais longe no tempo, vertiginosamente, sem uma interrupção,
através da história, através de todas as civilizações, até os protozoários originais.

Claro está que é possível tomar o roteiro pelo outro sentido e ver que o fato de jogar um charuto
pela janela de um carro, provocando a morte de um mendigo, pode mudar totalmente o curso da história
e conduzir ao fim do mundo.

Encontro um magnífico exemplo desse acaso histórico num livro claro e denso que representa para
mim a quintessência de uma determinada cultura francesa, Ponce Pilate de Roger Caillois.
Pôncio Pilatos, conta-nos Caillois, tem todas as razões para lavar suas mãos e deixar que
Cristo seja condenado. É essa a opinião de seu conselheiro político, que teme perturbações na Judéia.
É esse também o pedido de Judas, para que se realizem os desígnios de Deus. É essa até a opinião
de Marduk, o profeta da Caldéia, que imagina a longa sequência de acontecimentos que ocorrerão
depois da morte do Messias, acontecimentos que já existem, uma vez que ele os vê e é profeta.

A todos os argumentos Pilatos só pode opor sua honestidade, seu desejo de justiça. Após uma noite
de insônia, toma sua decisão e liberta Cristo. Este é recebido com alegria por seus discípulos.
Continua sua vida, seu ensinamento e morre bastante idoso, considerado um homem muito santo.
A seu túmulo, durante um ou dois séculos, acorrerão peregrinos. Depois será esquecido.

E a história do mundo, naturalmente, será inteiramente diferente.

Esse livro me fez meditar durante muito tempo. Sei bem tudo o que podem dizer-me sobre o
determinismo histórico ou sobre a vontade todo-poderosa de Deus, que levaram Pilatos a lavar
suas mãos. Recusando a pia e a água, ele mudaria toda a sequência dos tempos.

Quis o acaso que lavasse as mãos. Não vejo, como Caillois, nenhuma necessidade nesse gesto.

Claro está, se nosso nascimento é totalmente fortuito, devido ao encontro acidental de um óvulo
com um espermatozoide (por que exatamente este entre milhões?), o papel do acaso desaparece quando
se constroem as sociedades humanas, quando o feto e depois a criança se acham submetidos a essas
leis. E assim ocorre com todas as espécies. As leis, os costumes, as condições históricas e sociais
de uma determinada evolução, de um determinado progresso, tudo o que pretende contribuir para o
estabelecimento, o avanço, a estabilidade de uma civilização à qual pertencemos pela boa ou má
sorte de nosso nascimento, tudo isso surge como uma luta quotidiana e tenaz contra o acaso.
Nunca totalmente aniquilado, vigoroso e surpreendente, ele tenta conformar-se à necessidade social.

Mas creio que é preciso evitar ver, nessas leis necessárias que nos permitem viver juntos,
uma necessidade fundamental, primordial. Parece-me, na realidade, que não é necessário que este
mundo exista, que não é necessário que estejamos aqui vivendo e morrendo. Já que somos apenas os
filhos do acaso, a terra e o universo poderiam ter continuado sem nós, até à consumação dos séculos.
 Imagem inimaginável, a de um universo vazio e infinito, teoricamente inútil, que nenhuma
inteligência poderia contemplar, que existiria sozinho, caos duradouro, abismo inexplicavelmente
privado de vida. Talvez outros mundos, que não conhecemos, sigam assim seu curso inconcebível.
Atração pelo caos que às vezes sentimos profundamente em nós mesmos.

Alguns sonham com um universo infinito, outros o apresentam a nós como finito no espaço e no tempo.
Eis-me entre dois mistérios, um e outro igualmente impenetráveis. De um lado a imagem de um universo
infinito é inconcebível. Do outro, a idéia de um universo finito, que um dia já não existirá,
torna a mergulhar-me num Nada impensável, que me fascina e me horroriza. Perambulo de um a outro.
Nada sei.

Imaginemos que o acaso não existe e que toda a história do mundo, bruscamente tornada lógica e
previsível, possa resumir-se em algumas fórmulas matemáticas. Nesse caso, seria necessário acreditar
em Deus, supor, como inevitável, a existência ativa de um grande relojoeiro, de um ser supremo
organizador.

Mas Deus, que tudo pode, não teria podido criar, por capricho, um mundo entregue ao acaso?
Não, respondem-nos os filósofos. O acaso não pode ser uma criação de Deus, já que ele é a negação
de Deus. Esses dois termos são antinômicos. Excluem-se mutuamente.

Não tendo fé (e persuadido de que a fé, como todas as coisas, nasce frequentemente do acaso),
não vejo como sair desse círculo. É por isso que não penetro nele.

A consequência que disso extraio, para uso próprio, é muito simples: crer e não crer dá no mesmo.
Se me provassem, neste instante, a luminosa existência de Deus, isso não modificaria rigorosamente
em nada meu comportamento. Não posso crer que Deus me vigie permanentemente, que se ocupe de minha
saúde, de meus desejos, de meus erros. Não posso crer, e de toda maneira não aceito isso, que ele
pudesse punir-me por toda a eternidade.

Que sou eu para ele? Nada, um vestígio de lama. Minha passagem é tão rápida que não deixa marca
alguma. Sou um pobre mortal, não conto nem no espaço nem no tempo. Deus não se ocupa de nós.
Se existe, é como se não existisse.

Raciocínio que resumi no passado nesta fórmula: “Sou ateu, graças a Deus.” Uma fórmula que só
aparentemente é contraditória.

Luis Buñuel, retirado de seu livro “Mon Dernier Soupir”.

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